Primeiro aniversário do “Novo” Decreto do Pregão: dicotomias do (des)congelamento normativo.

Escrito por Renato Fenili.

No dia 23 de setembro de 2019, o Diário Oficial da União dava vida (jurídica, ao menos) ao Decreto nº 10.024/19, o então chamado Novo Decreto do Pregão Eletrônico. Na data de seu primeiro aniversário, é chegado o momento de uma espécie de balanço, de se registrarem as lições aprendidas e os caminhos futuros, aqui, neste artigo especial, sumarizados em 7 tópicos, expostos um pouco mais adiante. Antes, contudo, teço poucas reflexões.

Fato é que o citado decreto não entrou em vigor no próprio dia 23. Seus efeitos foram inaugurados mais de um mês depois, exatamente no dia 28 de outubro de 2019. A publicação antecipada deu-se no intuito de possibilitar a adaptação de editais que ainda estivessem na fase interna dos certames ao novo regramento, bem como o de suscitar a familiarização do mercado e da própria Administração Pública com as novidades. Afinal, foram muitas: algo em torno de mais de duas mudanças significativas identificáveis.

Hoje, continua-se chamando o Decreto nº 10.024/19 de “Novo Decreto do Pregão”, ainda que já completados os seus primeiros 365 dias. E provavelmente será o “Novo” por mais um bom tempo, é o que se prenuncia. Esse “novo” pode ser assim entendido sob dois prismas principais. O primeiro deles dá-se à luz do cotejamento com o diploma anterior, o “finado” Decreto nº 5.450/05, que gozou de sobrevida de 14 anos, intocável, imutável, rígido. Um simbolismo em substrato no qual residem uma Lei do Pregão que chegou, recentemente, à sua maioridade, bem como uma Lei Geral de Licitações que, se nos descuidarmos, chegará aos seus 30 anos – espero, sinceramente, que não. O segundo enfoque diz respeito – aí sim – a uma crescente capilaridade do decreto. Há, de fato, municípios que ainda estão sendo tocados de forma inaugural pelo decreto, saindo do modelo único de certames presenciais para ingressar no paradigma digital. Um futuro que se faz presente, consideradas as dimensões de nosso País.

Segue-se, pois, a análise.

1. O significado do Decreto.

Grosso modo, o decreto, enquanto centrado na logística pública, reside na tríade intervenção – inovação – alteração de status quo.

A intervenção deu-se no sentido de se usar o pregão como meio de se carregarem as inovações. De tirar um Brasil de compras públicas analógicas e colocá-lo no paradigma eletrônico. De se fomentar a sustentabilidade, a capacitação. Mudanças que extrapolam em muito a modalidade em si, passando a alcançar a grande temática de contratações governamentais.

Logicamente, sucedeu-se a alteração do status quo. O vulto licitado anualmente via pregão é enorme. Alterar de modo tão radical regras de negócio dessa modalidade traz impactos severos na Administração Pública, no mercado, em escolas de governo, em empresas de capacitação, em juristas, doutrinadores, docentes, escritores, discentes, e, até mesmo, na percepção de organismos multilaterais sobre licitações públicas nacionais. A gênese do diploma infralegal exigiu que todos percorressem novas curvas de aprendizagem, em matéria, convenhamos, árdua. A reação foi multifacetada, como esperado, em script quem bem delineia a ciência política: discursos de chancela das novas práticas misturados com os de deslegitimação. O esforço, in casu, é o de bem filtrar o aspecto técnico das percepções, de sorte a colher insumos para a melhora do rito em si. E vamos em frente.

2. Diálogo.

O projeto que culminou na edição do Decreto nº 10.024/19 foi conduzido de forma amplamente dialogada, colegiada. Duas audiências públicas, consulta pública, reuniões com os principais stakeholders. Tal foi o marco sedimentado no ano passado, e que acompanhou todas as principais inovações capitaneadas pela Secretaria de Gestão desde então.

Como lição aprendida, nesse contexto, uma só: o diálogo deve ser ampliado e realizado pelas vias institucionais. A Rede Nacional de Compras Públicas – a ser retomada em breve interregno – deverá ser o locus para tal debate

3. Do analógico ao digital.

Um dos maiores legados – quiçá o maior deles – do diploma é o de ter alavancado, de forma derradeira, as compras públicas eletrônicas no País. E, mais ainda, a regra subjacente a estados e municípios, ao realizarem contratações de bens e de serviços comuns, são as rotinas otimizadas do novo decreto.

Desde a entrada em vigor da norma, mais de 1.200 municípios fizeram a adesão ao SIASG, conforme o gráfico a seguir. Somam-se a esse contingente os entes federativos que passaram a usar outros sistemas de e-procurement, e poderemos ter uma noção da mudança de maturidade vivenciada em tão diminuto interregno.

renato-fenili Primeiro aniversário do “Novo” Decreto do Pregão: dicotomias do (des)congelamento normativo.

Nesse caso, o insight exitoso da Secretaria de Gestão foi o de utilizar as transferências voluntárias da União como mecanismo de condução das novas práticas. Tal linha de ação é mero desdobramento de comando insculpido na Lei de Diretrizes Orçamentárias, cuja inobservância, por óbvio, seria indevida pelo órgão central de governo:


LDO, Art. 75, § 3º  Sem prejuízo dos requisitos contidos na Lei Complementar nº 101, de 2000 – Lei de Responsabilidade Fiscal, constitui exigência para o recebimento das transferências voluntárias a observância das normas editadas pela União relativas à aquisição de bens e à contratação de serviços e obras, inclusive na modalidade pregão […]

Mister consignar paradoxo analítico nesse caso. Ao mesmo tempo que a LDO parece passar ao largo de alguns artigos recentes que abordam a temática de capilaridade top-down do novel decreto, o dispositivo legal é o esteio para que órgãos como tribunais de contas e o próprio Ministério Público conduzam ações de em prol da transparência, padronização e mitigação dos riscos à corrupção, lato sensu.

Em termos mais amplos, avalia-se que a ampla competição inerente a certames eletrônicos deva ser bem equilibrada, com as preferências a fornecedores locais. Tal é a temática a ser faceada em sede legal, pelo nosso Parlamento, na hipótese de bem julgar como pertinente a compor a agenda de políticas públicas nacional.

4. Integração de sistemas de pregão à Plataforma +Brasil.

A relação de sistemas eletrônicos de compra que se encontram interligados à Plataforma +Brasil encontra-se aqui. O desafio tecnológico esta superado. Remanesce, contudo, o desafio dos órgãos de controle, a fim de verificar o atendimento ao preceito normativo.

5. Modos de disputa.

Um dos principais ensejadores da edição do Decreto nº 10.024/19, a alteração dos modos de disputa encontra, até hoje, espaço para amplas discussões. Qual o melhor modo? Houve prejuízo indevido às micro e pequenas empresas? A busca pelo menor preço tornou-se desproporcional, em detrimento do fomento ao mercado e da persecução da qualidade?

Fato é que, passado este ano seminal do decreto, momento é o de análise. A base de dados formada nesse interstício deve ser examinada, evidenciando caminhos para a lapidação dos modos, se for o caso. Ou, ao menos, de se exporem aos gestores as melhores estratégias negociais, com fulcro na série histórica.

Aqui, é uma opção de logística, de negociação com o mercado, e de ferramental claro aos partícipes da relação contratual.

6. Documentos de habilitação enviados em conjunto com a proposta.

Tal mudança suscita, hoje, estudos para seu aprimoramento. As lições aprendidas neste ano trazem indícios de que a prática deve, ao mesmo tempo, mitigar comportamentos indevidos, mas, ao mesmo tempo, não deve dar azo a que a Administração perca a oportunidade de contratar por um ótimo preço, por excesso de formalismo.

Eis a discussão ora em curso, de forma institucionalizada entre a Secretaria de Gestão e instâncias de controle.

7. O não congelamento do novo.

Não menos importante é o entendimento de que o Decreto é um ato administrativo. Por “administrativo” entenda-se: “de gestão”. Foi um ato que, há um ano, entendeu-se que conseguia reunir e dar forma às melhores decisões para otimizar o rito de pregão eletrônico da União.

Ao mesmo tempo em que há inovações não plenamente instituídas – a dispensa eletrônica para serviços ou para outras hipóteses do art. 24 da Lei nº 8.666/93 é uma delas, a ser realizada nos próximos meses – diversos avanços já permitem reanálise. O desafio, provavelmente o maior de todos, é aliar a visão técnica e clara da necessidade de lapidação com os custos de implementação (sistemas de TIC) e de sedimentação das novas práticas. Nesse âmbito, um exame de custoefetividade é condição sine qua non, de sorte a se evitarem diminutas incrementalidades autocentradas que possam atrair desmesuradas inseguranças jurídicas. Ou, ótica outra, de se evitar o apego ao infundado congelamento normativo em detrimento de evoluções relevantes.

Renato-Fenili Primeiro aniversário do “Novo” Decreto do Pregão: dicotomias do (des)congelamento normativo.

Renato Fenili é Doutor em Administração e Secretário Adjunto de Gestão do Ministério da Economia. Professor, escritor, consultor e palestrante de renome nacional e internacional.